quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

A orquestra da vida e das palavras de Joel Silveira

Por Eveli Rocha

No dia 23 de setembro de 1918, no interior de Sergipe, mais precisamente na cidade de Lagarto, nascera aquele que talvez não mudou a história do jornalismo no Brasil, mas muito contribuiu para a criação de uma forma romântica e inovadora, aquele que seria um dos percussores do jornalismo literário.
Poucos relatos irrelevantes descrevem o que fez até seus 19 anos. Atuou em alguns veículos de comunicação locais, teve intrigas com o pai e finalmente resolveu desembarcar, abordo de um navio a vapor, no porto do Rio de Janeiro. Ícone do jornalismo literário. Joel Silveira!
No bolso o suficiente para comer e morar por dois meses, na mente e na alma os sonhos e a coragem de um guerreiro. Trazia consigo uma única referência à qual não hesitou bater a porta: era um semanário “Dom Casmurro”, um dos mais importantes da época. Por sorte, competência ou algo similar, saiu de lá empregado. Não demorou mais que seis meses para que seu nome aparecesse no expediente como secretário de redação.
Autenticidade e idealismo se uniriam em Silveira, para transformar o jovem do interior, em um dos maiores e melhores jornalistas do Brasil. Foi no semanário Diretrizes que Silveira ganhou repercussão Nacional. Especialização: destilar veneno entre as palavras. Característica que fez Silveira herdar do “poderoso chefão” do Diários Associados, Assis Chateaubriand, o alcunha de Víbora. Não é para menos, ele não se incomoda em alfinetar políticos, celebridades, e até as mais inofensivas categorias que enfeitam a sociedade.
Atrás de belas palavras estava a ironia de Silveira escondida. Ela vinha nua como uma criança que acabou de nascer. Sua coleção de mal dizeres é quase infinita, nem o Papa Pio XII escapou de seu veneno. “Foi a celebridade mais idiota que conheci”.
A literatura é a fonte que umedece os textos de Silveira, mas adicionados a boas doses de maledicência. E note que muitas vezes não é ideologia, é pura provocação. Mas quando o assunto é a elite emergente da década de 40 em São Paulo, aí sim ele provoca mesmo. O jornalista dos presidentes, mais um de seus nomes da coleção, foi considerado pelo então presidente Getúlio Vargas como doutor em jornalismo.
“Jornalista tem que ter bandeira, não pode ser a favor de tudo”. Foi nessa linha editorial que escreveu duas reportagens que marcaram a história do Jornalismo Literário. A primeira se estampou nas manchetes em 1943, como uma forte provocação à elite: “Eram assim os grã-finos em São Paulo”, onde flores e veneno se misturam entre palavras para criticar uma sociedade que em plena segunda guerra mundial desfruta imensa futilidade.
Dois anos mais tarde Silveira cutucaria novamente com suas palavras, aqueles grã-finos. O alvo seria o casamento da filha do Conde Francisco Matarazzo com João Lage, um milionário, italiano. “A milésima segunda noite na Avenida Paulista”, foi uma reportagem tão rica e cheia de trocadilhos que mais tarde se transformaria em um livro.
A segunda guerra foi mais um período de destaque e iluminação para o maestro das palavras. Em entrevista à IstoÉ, criticou a cobertura que os jornais fazem nos dias atuais “Antes o jornalista corria os mesmos riscos que um soldado, pois ficava junto com eles à frente do perigo. Hoje a cobertura é realizada de um quarto de hotel.”
Como uma metade que o completava, Silveira sempre cultivou sua paixão pela profissão de repórter. Recusou inúmeras propostas tentadoras, onde poderia ostentar altos salários e poder nas redações, tudo em nome da boa reportagem.
Quando o assunto é cultura, a resposta é afiada, na ponta da língua para despontar como furada ferina na reputação de autores que mais o queriam ver como inimigo. Afirma sem ressentimentos que o Brasil só tem dois grandes autores dignos de serem chamados escritores: Graciliano Ramos e Machado de Assis. “O resto, é resto”. Apesar de ter sido amigo – que mais parecia amigo da cobra – de Jorge amado, afirma que suas obras são uma porcaria.
Sessenta anos é o tempo que Silveira se dedicou ao Jornalismo. Só os bons conquistam um portifólio como o seu. Sua coleção de livros lançados é de cerca de 40 e pelo dom da sinfonia que fazia com as palavras conquistou o prêmio Machado de Assis, um dos mais importantes da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto de suas obras. Fazem parte da coleção prêmios como Libero Badaró, Prêmio Esso Especial, Prêmio Jabuti e o Golfinho de Ouro.
O tempo sempre cruel com todos, foi esgotando as habilidades desse maestro de palavras. Um sentido ficou intacto. Como toda e boa víbora, a produção de veneno nunca se esgotou. Devido um problema de diabetes que afetou as vistas, seus olhos não mais puderam apreciar as quase infinitas linhas existentes em 15 mil livros empoeirados em sua biblioteca particular.
Acompanhava o mundo através da janela de seu apartamento, da TV e dos jornais que eram lidos por sua filha. Do mundo atual ou da história moderna, não há quem passasse pelo jornalista como indiferente.
De Silveira ficou a história, seus livros, matérias e textos que jamais foram publicados. No dia 15 de agosto de 2007, o Brasil e principalmente o jornalismo brasileiro perdeu um patrimônio que circulava e acumulava de forma industrial cultura, sabedoria e crítica.
Dizem que ele carregava consigo um tumor e não se cuidou, mas aos 88 anos, é hipocrisia dizer que morreu de alguma patologia. Viveu intensamente e foi se em um momento que a carcaça humana não suportava mais um corpo tão pesado, mas de alma tão lúcida.